Naquele dia tudo tinha sido tenso e intenso. A correria começou cedo e não parou até o final do expediente. Teve problemas com a equipe de trabalho, cometeu alguns erros e se culpou. Não havia espaço para falhas. Ela estava esgotada.
Ao fim do dia, o ritual de sempre para voltar para casa. Sem espaço para sentir absolutamente nada. Apenas a rotina de todos os dias. Seguir em marcha atlética até o ponto para não perder o ônibus, rezar por um lugar vazio, ter rezado em vão e ir em pé, sacolejando na condução lotada, atravessando a cidade de um lado ao outro. Talvez tivesse a sorte de não ser encoxada. Com mais sorte ainda vagaria um lugar e ela se sentaria.
Isso era o que estava previsto, mas não foi o que aconteceu. Não naquele dia.
Perdeu o ônibus e teve que ficar por mais 20 minutos de pé no ponto. Quando finalmente conseguiu embarcar se posicionou próximo à porta de saída, apenas para não ficar no meio do caminho, atravancando a passagem.
No centro da cidade ele embarcou. Os pés ágeis e descalços o projetaram pela porta de saída, segundos antes dela se fechar. Esgueirou-se para não ser visto e sentou-se na escada. O corpo franzino encostado na perna dela pela falta de espaço. A blusa vestida do lado do avesso por um motivo desconhecido. bermuda velha e novamente os pés descalços gritaram por atenção.
Os outros passageiros se espremiam para não o tocar. Seguravam com força suas bolsas e retiravam mochilas do chão. Havia medo e preconceito no olhar das pessoas.
Um garoto de uns 10 anos, ela imaginou. Sentiu-se ameaçada pela violência da imagem. Um menino viajando clandestinamente no ônibus, de camiseta no dia frio, com pés descalços perturbadores. Quando se deu conta, o menino chupava o dedo imundo, como se fosse apenas um bebê.
Não havia o que fazer. Normalmente carregava biscoitos na bolsa, nesse dia não tinha nada que pudesse oferecer. Ela queria descer com ele do ônibus e lhe comprar chinelos. Os pés descalços lhe incomodavam bastante. Pagar-lhe um lanche, perdoando-se por ter tudo e algo mais que não precisava ter. Imaginou como ele fazia para se alimentar. Outro dia talvez pudesse ser assaltada pelo mesmo menino que, com fome, não teria outra alternativa além de roubar. Então, teria raiva dele. Mas enquanto ele estava ali, desprotegido e vulnerável, ela só pensava em como amenizar aquela sensação de impotência. Pensou, mas não agiu. Não fez nada. Aliás, fez. Ele pediu que ela tocasse a campainha apenas com um gesto de cabeça e ela o fez. O menino saltou e ela chorou. Chorou sua incapacidade, chorou sua roupa quentinha e chorou a conta do cabeleireiro. Mas chorou sozinha. Os outros estavam aliviados. Como se não ver o tornasse inexistente.
Naquele dia chegou à sua casa ainda chapada pela freada que a vida lhe deu. Abraçou o filho que brincava feliz no sofá caro. O menino levantou-se para buscar outro brinquedo e ela mais do que depressa pegou os chinelos dele. Não poderia suportar pés descalços aquela noite.
Maíra Gomes Texto escrito em 21 de Outubro de 2014.
O vídeo a seguir é uma atividade realizada com o texto no curso de Leitura Dramatizada da Faetec, em Novembro de 2020.
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